quinta-feira, 17 de junho de 2010

Cartilha da cura

As mulheres e as crianças são as primeiras que
desistem de afundar navios.

(ana cristina cesar)

Este Livro

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur
volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

(ana cristina cesar)

Atrás dos olhos das meninas sérias

Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário
nobre do adultério. Separatista protestante.
Melindrosa basca com fissura da verdade. Me
entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o
primeiro side-car anfíbio nos classificados de
aluguel. No flanco do motor vinha um anjo
encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para
o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo
para fora (mas meu salto engancha no pedaço de
pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem
rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás.
Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê
novela de verdade e meu manto azul dourado mais
pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da
frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e
pernalta.

(ana cristina cesar)

Conversa de Senhoras

Não preciso nem casar
Tiro dele tudo o que preciso
Não saio mais daqui
Duvido muito
Esse assunto de mulher já terminou
O gato comeu e regalou-se
Ele dança que nem um realejo
Escritor não existe mais
Mas também não precisa virar deus
Tem alguém na casa
Você acha que ele agüenta?
Sr. ternura está batendo
Eu não estava nem aí
Conchavando: eu faço a tréplica
Armadilha: louca pra saber
Ela é esquisita
Também você mente demais
Ele está me patrulhando
Para quem você vendeu seu tempo?
Não sei dizer: fiquei com o gauche
Não tem a menor lógica
Mas e o trampo?
Ele está bonzinho
Acho que é mentira
Não começa

(ana cristina cesar)

Inverno Europeu

Daqui é mais difícil: país estrangeiro, onde o creme
de leite é desconjunturado e a subjetividade se
parece com um roubo inicial. Recomendo
cautela;“Não sou personagem do seu livro e nem
que você queira não me recorta no horizonte teórico
da década passada. Os militantes sensuais passam a
bola: depressão legitima ou charme diante das
mulheres inquietas que só elas? Manifesto: segura a
bola; eu de conviva não digo nada e indiscretíssima
descalço as luvas (no máximo), à direita de quem
entra.

(ana cristina cesar)

Sete Chaves

Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo
fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio silencioso e origem que não confesso –
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.

(ana cristina cesar)

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes
barganhando uma informação difícil. Agora
silêncio; silêncio eletrônico, produzido no
sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma idéia.
Eu não tenho a menor idéia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura
menos que o seu amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
N5o, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio
do grande rio.


(ana cristina cesar)


Instruções de Bordo

(para você, A.C., temerosa, rosa, azul-celeste)

Pirataria em pleno ar.
A faca nas costelas da aeromoça.
Flocos despencando pelos cantos dos
lábios e casquinhas que suguei atrás
da porta.
Ser a greta,
o garbo,
a eterna liu-chiang dos postais vermelhos.
Latejar os túneis lua azul celestial azul.
Degolar, atemorizar, apertar
o cinto, o senso, a mancha
roxa na coxa: calores lunares,
copas de xampã, charutos úmidos de
licores chineses nas alturas.
Metálico torpor na barriga
da baleia.
Da cabine o profeta feio,
de bandeja.
Três misses sapatinho fino alto esmalte nau
dos insensatos supervôos
rasantes ao luar
despetaladamente
pelada
pedalar sem cócegas sem súcubus
incomparável poltrona reclinável

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Ana Cristina César, Cenas de Abril, 1979.

Do nome

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O título do blog surge de um poema de Ana Cristina César, publicado em Cenas de Abril, 1979, intitulado justamente Instruções de Bordo, que segue dedicado, entre parênteses, para uma certa A.C, temerosa, rosa e azul-celeste. Neste sentido, entre o falso e o verdadeiro, o que aparece é o gesto de pirataria em pleno ar, sem possibilidade de salvação. O rosto, de Greta Garbo, um assassinato, os postais vermelhos, o que exala na própria escritura do roxo na coxa. A escrita secreta e enigmática ressurge assim com seus sapatinhos finos de esmalte, nisto aqui que pode se chamar de Nau dos Insensatos, no seu vôo (mergulho ou naufrágio) rasante ao luar. O que resta, como no fim do poema, é um sujeito liberado em sua incomparável poltrona reclinável.
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