eu poderia começar a escrever sobre são paulo pensando em 1995, ano em que lá pisei pela primeira vez. até então, sempre que minha mãe falava de são paulo, eu, lá na minha cidadezinha do interior, achava que era só o nome de uma rua movimentada que ficava do outro lado da ponte - e que devia ter algo de muito misterioso, porque nunca me levavam lá.
se eu começasse por aí, também teria que lembrar que uma das coisas que mais me aterrorizavam naquela cabecinha de criança era o metrô. lembro de embarcar no tietê e descer na luz e de não largar da mão da mãe, talvez menos por medo de me perder do que pelo pensamento de que eu podia cair no trilho. lembro, dessa época, do brás e do bom retiro - percurso básico pra comprar roupas pra revender, no qual eu acompanhava cansadamente a mãe esperando o mcdonald's do fim do dia. (porque criança de cidade do interior tem esses "fascínios". hoje, como mcdonald's só em último caso.)
sobrevieram outras tantas passagens por lá. algumas mais rápidas, outras com cara de praticamente ir morar, de tanto tempo que fiquei na casa do rafa, por exemplo, nos tempos em que ele morava na vila mariana e ainda não tinha decidido ser um desterrado. lembro do elevador que estragou no dia em que eu cheguei com uma mala enorme, com a qual subi 15 andares de escadas estreitas. e da velhinha japonesa que não aguentaria o trajeto e teria que esperar no hall pela assistência técnica ou pelo colo de alguém (que ela resistia a aceitar).
podia lembrar dos casos que o rafa conta sobre residir na amaral gurgel. de uma série de piadas de novelas, como flora dizendo pra silveirinha que fosse achar uma maricona no parque trianon, em "a favorita". de "rainha da sucata", que chegou a aparecer na veja, e do dia em que me apontaram de que prédio laurinha albuquerque figueiroa havia se atirado para incriminar maria do carmo pereira.
das noites augusta acima e-ou abaixo, indo mais sóbrio do que voltando pros tantos bons inferninhos que tem por ali.
dos bafafás no formule 1 da consolação, com aqueles quartinhos pré-moldados com vista pras obras da linha amarela do metrô.
das idas ao descampado da usp, dos afundamentos no arquivo do ieb e das papeladas cheias de "remedinho" do mário de andrade, caninamente vigiadas por marita, especialmente em se tratando de rimbaud.
são paulo virou meio que um destino: mesmo não morando lá, um belo dia resolvi remexer uma pilha de revistas velhas no nelic e lá estava uma chamada "anhembi". "rio de unas aves añumas", era a definição do tal rio, desse vocacionado a correr pra dentro da terra, e não pra fora, desse que se interioriza, e não se confunde com o atlântico. desse rio que hoje resolve inundar suas marginais cheias de carros e causar pavor, quando a chuva não para e não pode escoar. as aves-unicórnio-preto e o deus-rio penetrador. travestido de bandeirante, uma figura que virou um casamento de pesquisa: paulo duarte.
teria outros rios de linhas para traçar sobre duarte ou o dito do rio. fiz isso, em parte, aqui. minha surpresa de hoje foi deparar com a folha noticiando a reinauguração da biblioteca mário de andrade e ver que o nome de paulo duarte, geralmente tão negligenciado por muitos que escrevem sobre são paulo, apareceu lá. mas como poeta. o mesmo paulo duarte cujo túmulo procurei, procurei e não encontrei no cemitério da consolação (que já me rendeu excelente passeio - e ao ev., uma torção de pé por praga do mário de andrade - cujo túmulo encontramos, cheio dos anjos; sinceramente, preferi o do oswald e achei o da tarsila tão abandonado! bem, se fosse escolher, preferia ser enterrado no jazigo matarazzo mesmo - ou, a exemplo do presidente campos sales, ter uma estátua carpideira ao meu lado para sempre, dado que ninguém vai ficar chorando minha morte por aí.)
primeiro me peguei pensando: de tudo quanto foi arquivo que vi do paulo duarte, o que menos impressiona sem sombra de dúvida são seus escritos poéticos. é o tipo de coisa que faz a gente pensar que escrever poema precisa de um instinto, apesar de eu odiar esses argumentos essencialistas: como é que a pessoa convive com mário de andrade, guilherme de almeida, ou chega mesmo a conhecer breton e buñuel e escreve versos tão ruinzinhos?
depois, acabei com a cabeça em outro tipo de poesia. aquele tipo de poesia que a gente abandona a escrita pra viver. a lição, se eu quiser mesmo voltar pro sempre citado clichê, é de rimbaud: largar uma carreira prodigiosa de poeta para traficar armas. aquela coisa de "vida em estado de poesia". talvez, em algum sentido disso, duarte seja poeta, e poeta mesmo. quixotescamente poeta e encantador do cenário, andando pelo meio das ruínas de 1924, brigando com a já tradicional faculdade de direito do largo do são francisco, ainda entre os anos 20 e 30.
pegando, também, em armas, nos anos 30, por achar que a "revolução" tinha perdido o prumo com vargas, desafeto da vida inteira, que lhe impôs dois exílios e tantas contingências. ajudando a fundar a usp, e anos mais tarde criando seu instituto de pré-história, perdido para os militares.
errando por apartamentos em que encontrava boêmios amigos em seus tempos de estadão, antes ainda dos exílios. aliás, oportunidades únicas de abandono desse território, os tais exílios: mesmo que tenham trazido a fortuna dos contatos em toda a europa e as lições do mestre paul rivet, eram praticamente um dilaceramento.
a poesia de cada um desses nomes de rua que vêm pelos tantos volumes de memórias de paulo duarte, tão pouco lidas hoje em dia, tão pródigas que são em uma travessia por uma cidade, em pé de guerra com as figuras de todo um tempo, é justamente o avesso desse abandono. cada uma dessas linhas todas com que duarte (se) escreveu sobre a cidade, longe de ser abandono de si, é rasura na paisagem. é constitutiva da maneira como hoje olho pra essa cidade, que hoje também abraço, pelos seus 457 anos.
p.s.: a acidez por conta da tumultuada relação com gente da cidade de são paulo aparece já nos escritos de meia-idade de paulo duarte. veja-se, a propósito, "defesa", poema que assina com o pseudônimo "raposo denis" (juntando o bandeirante raposo tavares com o autor da primeira história da literatura brasileira, ferdinand denis.)
Resolvi reformar a minha casa.
Aumentei a Adega e a Biblioteca.
É que o bom vinho casa sempre bem com o bom livro.
E leve a breca o resto.
Ah! ia me esquecendo:
o jardim dá pra rua e é quasi aberto.
Não pode ser. Um homem, como eu,
tendo tido tanto contacto com os homens,
e que vai envelhecendo, é mais que certo,
a não ser um carater muito chato,
ficar, por fim, um pouco rabugento...
Sorri-lhe, assim, a idéia do deserto
ou do mais absoluto isolamento.
Preciso, pois, fechar o meu jardim
com uma grade bem pesada, de ferro.
Feito isto, eu, para a paz tão sonhada,
só me será preciso, que me recorde,
ao lado do portão, pregar o aviso:
“O cão é bravo e o dono também morde”.
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